Saudável é dormir bem à noite, sem muitos cochilos durante o dia. Lentamente, diante da televisão ligada, a cabeça da senhora idosa começa a balançar. Mais uma vez, ela cochilou durante a novela. Durante anos, a Medicina teve uma explicação para essa cena comum: os idosos tenderiam a fragmentar mais o sono, em conseqüência do processo de degeneração das estruturas do cérebro responsáveis pela organização temporal. Não estaria funcionando a sincronização da pessoa com o dia e com a noite. Esse conceito, porém, está mudando. Uma das razões dessa mudança pode ser uma pesquisa realizada em Campinas pelo Grupo Multidisciplinar de Desenvolvimento e Ritmos Biológicos (GMDRB) da Universidade de São Paulo (USP).
"A fragmentação do sono não é uma fatalidade", afirma, categoricamente, o professor Luiz Menna-Barreto do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, coordenador da pesquisa e do GMDRB. Ou seja: se forem saudáveis do ponto de vista físico e psicológico, se mantiverem ativos e conservarem um bom relacionamento social, os idosos têm tudo para manter, mesmo em idade avançada, o mesmo padrão de sono que tiveram durante a vida adulta.
Os resultados da pesquisa da USP são apoiados por outros estudos recentes, realizados nos Estados Unidos. Neles, pesquisadores relacionam a fragmentação do sono nos idosos a efeitos secundários de doenças características da terceira idade, ao abandono social e à falta de motivação em geral, associada a estados depressivos. Não, exclusivamente, a um problema de degeneração dos sistemas de temporização, os chamados relógios biológicos, mecanismos no cérebro que comandam os ritmos do corpo.
A pesquisa da USP foi realizada pelo GMDRB com 23 membros do grupo da terceira idade do Sesc de Campinas. ChamadaPadrões de Atividade e Fragmentação do Sono em Pessoas Idosas , contou com um financiamento de R$ 43,4 mil da FAPESP. Além da USP, há outros grupos na Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em Natal, na Universidade Federal de Pelotas no Rio Grande do Sul e na Unesp, em Assis.
A cronobiologia surgiu na segunda metade do século 20 com o objetivo de explicar a organização temporal dos seres vivos. Não é algo simples. Assim como os seres vivos passaram por um processo de adaptação ao espaço físico, durante sua evolução, também tiveram de se adaptar aos ciclos da natureza, como as estações do ano e os ciclos lunares. Essa adaptação é um dos campos de estudo da cronobiologia, que pesquisa ainda os ritmos internos do organismo, como o batimento cardíaco, o ritmo da respiração e a variação de temperatura corporal.
Não é por acaso que o sono das pessoas idosas merece tanto interesse. Um dos ritmos biológicos mais estudados é o ciclo vigília-sono, cujo período oscila em torno de 24 horas. A determinação desse ciclo é endógena, ou seja, os sistemas orgânicos de temporização, ou relógios biológicos, geram um período um pouco maior do que 24 horas, que é ajustado a cada dia, por estímulos ambientais como o dia e a noite e horários de atividade e lazer. Uma pessoa em uma caverna, isolada desses estímulos temporais do ambiente, continua a apresentar aproximadamente o mesmo padrão de alternância entre vigília e sono.
Os relógios biológicos, sensíveis aos fatores ambientais cíclicos, também se ajustam às condições que encontram. No caso do ciclo vigília-sono, colocam o período de atividade e descanso em sincronia com o claro e o escuro do dia. Quando essa sincronicidade natural é perturbada, o organismo sofre, em situações nem sempre relacionadas com degenerações do organismo. É o caso de pessoas que trabalham à noite. Quase sempre, dormem de dia durante a semana e à noite nos períodos de folga, no fim de semana. Segundo Menna-Barreto, esse ritmo representa uma desordem temporal muito grande, do ponto de vista dos relógios biológicos.
Os dados dos dois métodos indicaram os padrões de sono mais extremos. Assim, na terceira etapa, entre os 23, foram selecionados seis idosos, quatro homens e duas mulheres, que apresentaram as médias mais elevada (um cochilo por dia) e mais baixa (nenhum cochilo) de fragmentação. Depois disso, o grupo passou mais nove dias fazendo registros de sono e de temperatura corporal.
Uma das hipóteses a ser verificada era que, se a fragmentação do sono era uma decorrência normal do envelhecimento, então, quanto mais idoso, maior deveria ser a fragmentação. "Mas pudemos constatar que isso não ocorre e que, portanto, a fragmentação não parece ser uma fatalidade", afirma Menna-Barreto. Outro fato importante foi observado na comparação entre os extremos. "Tanto os idosos que fragmentavam o sono quanto os que não fragmentavam tinham uma vida bastante satisfatória, o que prova que o hábito da sesta não é sinal de desorganização temporal", concluiu.
O fato de que todos os idosos estudados eram muito sadios e nenhum fragmentava o sono de forma excessiva sugere que a fragmentação pode indicar um envelhecimento não-saudável. "Quando um idoso começa a fragmentar demais o sono, ele deve, antes de mais nada, avaliar se isso não é conseqüência de algum estado de sofrimento", recomenda Menna-Barreto. Qualquer dor pode prejudicar a qualidade do sono porque impede que se atinjam os estágios mais profundos do sono.
Isso é freqüente entre os idosos que sofrem de doenças cardíacas ou reumatismo, por exemplo. "Mas tanto quanto a dor física, a dor da alma também tem efeitos negativos sobre o sono", afirma. A falta de motivação que acompanha os quadros depressivos pode comprometer a sincronicidade dos relógios biológicos com os ciclos ambientais.
Uma pequena fragmentação é perfeitamente normal. "Alguns indivíduos dormem regularmente a sesta depois do almoço, outros não", diz o pesquisador. "Dependendo da situação de vida, alguns podem simplesmente não expressar essa necessidade, passando a fazê-lo mais tarde, quando os compromissos deixam de ser obstáculos."
As pesquisas estão mostrando, de forma cada vez mais intensa, as conseqüências negativas do desrespeito aos ritmos biológicos. Esses elementos, diz o pesquisador, sugerem a necessidade de uma melhor reflexão sobre as relações entre o indivíduo e a sociedade. "Valores como competitividade, qualidade e produtividade são verdadeiras armadilhas temporais, que geram muita angústia", afirma. "É preciso refletir sobre essas armadilhas que criamos para nós mesmos."
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